Após a decisão do ministro Luís Roberto Barroso de determinar o comprovante da vacina para viajantes vindos do exterior ao Brasil, renovou-se ainda mais o debate acerca da legalidade e mesmo constitucionalidade do chamado “passaporte sanitário”.
Mas, afinal, o que seria o passaporte sanitário?
A primeira dificuldade encontra-se na sua definição, porque, até o momento, não há uma definição jurídica de passaporte sanitário.
Sendo assim, não havendo conceito jurídico para o fenômeno, nos é útil colher a ideia popular.
Nesse sentido, “passaporte sanitário” parece ser a obrigatoriedade civil de apresentação do comprovante de vacinação para a ocupação de funções, acesso a locais públicos e amplos atos da vida civil.
Isto posto, o que o Direito teria de dizer?
Em primeiro lugar, é necessário afastar os polos extremos da reflexão.
Há um polo corrente defensor da absoluta inconstitucionalidade e ilegalidade de qualquer obrigatoriedade de vacinação.
Esta corrente patentemente não está correta, tendo em vista que já existem vacinas obrigatórias no Brasil. Elas são previstas, por exemplo, principalmente no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Lei 6.259/75, que instituiu o Programa Nacional de Imunizações, e que no seu artigo 3º assim dispõe:
Art 3º Cabe ao Ministério da Saúde a elaboração do Programa Nacional de Imunizações, que definirá as vacinações, inclusive as de caráter obrigatório.
Parágrafo único. As vacinações obrigatórias serão praticadas de modo sistemático e gratuito pelos órgãos e entidades públicas, bem como pelas entidades privadas, subvencionadas pelos Governos Federal, Estaduais e Municipais, em todo o território nacional
Portanto, não há que se falar com seriedade da ilegalidade e inconstitucionalidade da obrigatoriedade de vacinação.
Em outro polo, contudo, também encontram-se aqueles que pugnam pela necessidade de apresentação de comprovante de vacina para amplos atos da vida civil, o que inclui o acesso locais públicos e privados, independente do estágio ou gravidade da pandemia.
Não parece vir ao socorro destes a Lei 13. 979/2020, a primeira lei de combate à pandemia do coronavírus, que prevê dentre várias medidas, a disponibilização de vacinas para o enfrentamento da doença.
A lei é explícita em destacar que a vacinação pode vir a ser uma medida de emergência para o controle da doença e que deixará a salvo o pleno respeito às liberdades e direitos fundamentais (art. 3º, § 2º).
Tais disposições lançam importante luz para uma reflexão jurídica do passaporte sanitário.
O fato da vacinação ser medida de emergência que deixa a salvo os direitos e liberdades mais fundamentais nos remete à teoria dos limites dos limites para a restrição dos direitos fundamentais, também denominada “SCHRANKEN-SCHRANKEN”.
Nessa teoria os direitos fundamentais possuem uma camada interna e externa, constituídos por assim dizer por um “núcleo” e por uma “periferia”.
A restrição aos direitos fundamentais poderiam atingir a camada externa ou “periferia” dos direitos, mas jamais seu núcleo fundamental.
Assim, quando a Lei 13.979/20 aduz que as medidas sanitárias deixarão a salvo o pleno exercício dos direitos fundamentais, por óbvio está se referindo ao exercício do núcleo desses direitos.
A esse respeito, por exemplo, já julgou o TRF4 na Mandado de Segurança nº 5044315-26.2017.4.04.7100 a desproporcionalidade da negativa de matrícula por atraso na apresentação do comprovante da vacina:
“A apresentação de documentação fora do prazo para fins de matrícula em curso superior não é motivo legítimo e razoável para a exclusão do estudante do vestibular e conseqüente perda da vaga desejada e conquistada por ele, tendo em vista a ausência de qualquer prejuízo à Universidade e a necessidade de proteção ao direito de acesso à educação pública.”
Neste caso, o núcleo dos direitos fundamentais, isto é, o acesso à educação pública, não poderia ser atingido pela não-apresentação tempestiva do comprovante da vacina. Ele foi preservado.
Quanto à restrição das camadas periféricas desses direitos, é necessário destacar a obediência aos princípios gerais do Direito Administrativo, dentre os quais são absolutamente essenciais a legalidade, a razoabilidade, a proporcionalidade e a motivação.
O gestor público, mesmo quando afeta somente a dimensão externa dos direitos fundamentais, faz ato grave. Sendo assim, ao emitir normas sanitárias deve atentar-se para a demonstração de medidas legais, razoáveis, proporcionais e motivadas, ou seja, que tenham previsão em lei e comprovada adequação entre meios e fins e necessidade.
Percebe-se desde já que o equilíbrio entre garantir o interesse público da saúde pública e o respeito ao núcleo fundamental dos direitos e liberdades fundamentais é bastante tênue e trata-se de tarefa árdua que merece alta prudência do gestor.
Para o caso concreto da atual pandemia o nosso principal comando normativo, a Lei 13.979/2020, traz como critério importante e basilar o caráter emergencial das medidas. Ou seja, não poderia a medida sanitária ser de natureza permanente.
Nesse sentido, por “emergência” podemos nos ater tanto à duração do “estado de emergência”, declarado pelo Poder Público, como também à urgência da medida sanitária.
Nesse contexto, deve-se verificar a plena harmonia entre ambas, isto é, a conformidade com a proporcionalidade e a razoabilidade, pois nem todas as medidas previstas num estado de emergência possuem o mesmo grau de urgência ou necessidade.
Sendo assim, a proposta aqui apresentada não pretende responder se deve ou não existir “passaporte sanitário”, mas sim lançar luz para uma reflexão pertinente e madura sobre a observância dos princípios que regem os atos administrativos para a atual pandemia. Este debate, dada a relevância do tema, não pode escorar-se em extremos.
Dr. Leandro Monteiro.